quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Descartes e a redescoberta do espírito

Descartes e a redescoberta do espírito

   Nascido em 31 de março de 1596 na cidade francesa La Haye, René Descartes foi filósofo, matemático e físico, e suas contribuições compreendem também os campos da astronomia, psicologia e anatomia. Deu início a sua filosofia enquanto servia ao exército na Guerra dos Trinta Anos, em novembro de 1619, quando se encontrou em um quarto bloqueado pela neve, na Alemanha.
     Iniciado nas letras desde a infância, acreditava que encontraria sábios e pessoas esclarecidas na universidade, mas, segundo ele, encontrou apenas mais dúvidas e erros. Seu objetivo de vida foi distinguir o conhecimento verdadeiro do falso, eliminando a confiança que tinha nas ciências e opiniões para testá-las uma a uma e ajustá-las ao nível da razão. Além disso, Descartes tinha a difícil missão de refutar o pensamento materialista proposto pela nova ciência natural, provando racionalmente a existência de Deus e da alma humana. Para tal tarefa, ele precisava retirar as pedras do passado, desconsiderando todo o conhecimento da humanidade até ali, recomeçando do zero. E foi o que fez.
     Através de pensamentos lógicos, o filósofo francês compreendeu que o homem é um ser cuja natureza consiste no pensar, que para ser não precisa de lugar algum ou coisa material. Assim conclui que a alma (essência pela qual ele é o que é) é distinta do corpo e que de modo algum está sujeita a morrer com ele. Essa separação entre alma/espírito e corpo (com o espírito sendo a propriedade primária e o corpo a secundária) é conhecida como dualidade cartesiana, teoria que "devolveu" o espírito ao homem e o retirou da condição de "mero animal pensante".
     Porém, o problema ainda não havia sido resolvido: restava provar a existência de Deus, e para isso, se valeu de fundamentos racionalistas. Ocorreu a ele que se conseguia imaginar um ser infinitamente perfeito, cujas perfeições ele mesmo não possuía (por ser imperfeito) e como uma causa não pode gerar um efeito mais perfeito que ela mesma, logo essa ideia de um ser perfeito fora colocada em seu espírito por uma natureza verdadeiramente perfeita: Deus.
     Então percebeu que imperfeições como dúvida e tristeza não existiriam em Deus, pois ele mesmo, um ser imperfeito, gostaria de não tê-las. Assim, chegou à conclusão de que o motivo que leva muitas pessoas a não acreditarem na existência de Deus e de seu próprio espírito é o fato de nunca se elevarem para além do que é sensível, e conclui que elas "tentam ouvir sons utilizando-se de seus olhos".
     A importância de René Descartes para o pensamento humano é inestimável, pois surgiu com seu pensamento durante um período em que a Filosofia mostrava-se cansada, rompeu com a tradição e acabou por criar uma nova escola filosófica, um novo pensar. Sendo assim, é reverenciado como o pai da Filosofia Moderna.
     O filósofo faleceu por ter contraído pneumonia, poucos dias antes de completar 54 anos. Muitos acreditavam que a Igreja o canonizaria por ter provado logicamente a existência de Deus, e alguns peregrinos levaram partes de seu corpo para guardar como relíquias. O restante foi sepultado na catedral de St. Germain de Pres, em Paris. Mas como ele próprio dizia: o corpo perece, o espírito vive. Descartes vive.

(Postado em 13/11/2013 - Nicolas Peixoto).

sexta-feira, 28 de junho de 2013

Meu caixão

Meu caixão

Em gélida arca retangular
junto cinzas, ossos e dores
enterro aqui falsos amores
estrelas observo, uma a uma a contar.

Eis que uma centelha de vida,
desavisada, no caixão inda brilha
Na face do crânio que jaz sorrindo
abarca a morte e seu funesto destino!

Apodreci num caixão modesto
Onde não cabem nem Musas nem Mundo
lar eterno dos meus restos
sepultura do meu sono profundo!

Postado em 28/06/2013 (escrito na madrugada do dia 10/05/2013. Ler "O caixão fantástico", de Augusto dos Anjos). Nicolas Peixoto.

segunda-feira, 27 de maio de 2013

Ideia em ação

Ideia em ação

(um esboço filosófico)


     Dentro deste mundo há diversos outros mundos. E ainda, dentro deles, infinitos mundinhos colossais. Eu sou um mundinho colossal. 1,83m, 70kg, Não sou medido por isso. Aliás, nem medido sou. Sou infinito, um infinito sem limites, gradativo, esperando o despertar.
     Cada pensamento não é só pensamento. É vida, é pulso, o rio em ação. É a prova de que o corpo é um mediador - eu não sou corpo, ele me serve e devo cuidar dele. Mas eu sou pensamento, a centelha infinita de pensamentos improváveis que nem minha consciência ainda sabe da existência. Porém, sabe que é capaz. A ideia é perfeita, mas a nossa ideia, diferentemente da de Deus, não cria. Ela imagina, exerce; coloca-nos em contato com proposições e, finalmente, com a ação prática. 
     Eu quero ser uma ideia em ação.

Postado em 27/05/2013. Nicolas Peixoto.

segunda-feira, 20 de maio de 2013

O Homem e a Sombra

O Homem e a Sombra

     Eu costumava andar na sombra. Na verdade, ela que costumava andar comigo. No início, eu tinha medo.  Depois, percebi que ela não era tão ameaçadora. Virei amigo da sombra. Ela me envolvia. Enquanto eu olhava para as luzes, sem alcançar nenhuma delas, a sombra me afagava. E em seus carinhos, acabei me apaixonando por aquela penumbra. Quer dizer, ela não era luz, mas e daí? Nenhuma luz jamais me envolveu, e aquela sombra ali, cuidando de mim, tratando dos meus anseios. E ainda dizia que eu também era bom para ela. Era um amor recíproco. Passei dias, noites, eras mentais sendo escondido, tragado por aquela sombra envolvente que dizia me amar. Um dia, percebi uma claridade súbita. Resolvi abrir os olhos: estava nu, vulnerável. Abandonado. O sol queimava minhas costas, minha face. A sombra havia me deixado. Ela, que outrora agarrava-se em mim, que me ensinou a amá-la, foi-se sem aviso algum. Fui deixado.

Postado em 20/05/2013. Nicolas Peixoto.

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Carlos

Carlos

     Essa é uma história sobre Carlos. Carlos da Silva Barbosa, funcionário do setor financeiro no Edifício Fluminense, no centro da cidade do Rio. Como não há nada de excepcional em sua vida linear, não tenho outro caminho senão ater-me a ela.
     Carlos tem trinta e oito anos, e há doze trabalha no mesmo endereço. Acorda às cinco e meia da manhã, toma o seu banho (sem o qual não desperta), prepara seu café amargo e deixa sua casa com a esperança de que o novo dia lhe traga alguma surpresa. Raramente lhe traz.
     "Bom dia, seu Osvaldo!", vai Carlos em direção ao elevador. 33º andar. Abre-e-fecha de porta, muitos "bons dias". Sua mesa está impecavelmente organizada, como de costume. Entre o processo mecânico que compreende sua função e as piadinhas dos "colegas de trabalho", há um espaço reprimido para uma angústia crescente. É verdade que ela começou inofensiva, mas agora ganhou alguma significância. Como uma mancha de café num documento oficial, ela vai turvando suas letras, seu papel, sua assinatura. Esperar até as dezoito horas para poder ir para casa parece um tormento. E tem o trânsito. Naquele dia, após um longo tempo esperando o sinal abrir, Carlos decidiu que precisava mover-se. Mas como?
     O trabalho paga suas contas, o trabalho o levou até ali: um homem solteiro, sem filhos, casa grande e confortável, carro novo na garagem. Tinha medo dos frutos de uma iminente atitude rebelde. Mas pensou que não tinha mais volta: já havia vislumbrado um futuro idealizado através do espelho da imaginação (ou seria do desespero?).
     A solução estava clara: venderia a casa (que no fundo fazia-o sentir-se ainda mais solitário) e venderia o carro também (nem é tão necessário, e ainda polui o meio-ambiente). Venderia, venderia; vender, vender. Tudo resolvido. Moraria (sempre no futuro do pretérito) num bairro distante, numa casa pequena. Lá poderia trabalhar como cuidador de cães, sua verdadeira paixão. Planos... muitos deles não saem do papel.
     Faz dois meses desde que Carlos teve aquela iluminação ascensional. Ganhou uma promoção. Aparentemente, o dinheiro consegue sarar angústias. Mas não consegue fazê-lo a longo prazo, e no segundo mês Carlos estava ainda mais infeliz com sua inércia.
     O despertador toca; são cinco e meia da madrugada. Carlos o desliga, e fica deitado de olhos abertos. Tenta levantar-se, mas sente dor nos pulmões. Deita-se novamente. Seu médico já havia proibido o cigarro. Lembra-se dos cachorros e dá um leve sorriso. Desliga o celular, ajeita-se na cama e volta a dormir.

16/05/2013. Nicolas Peixoto.

sábado, 20 de abril de 2013

Das deficiências do corpo

Das deficiências do corpo

     O tempo é coisa engraçada: às vezes age em nosso favor. Mas esqueçamo-lo por ora. Há dias quero escrever sobre esse sentimento de autodestruição que me aflige: o mal-estar advindo de um corpo físico, o corpo humano. Logo, o meu corpo também. Antes, deixo claro que aqui, neste espaço, não preciso ser "bondoso", muito menos medir palavras. O pensamento aqui é cru. Ok, vamos. O corpo humano é uma caixa de mal-estares, uma tremenda bomba-relógio cujo tempo restante ninguém vê. Uma observação: falo do corpo humano porque, em geral, quem o possui goza de uma mente sã, e logo, da razão. Por isso não cito aqui os demais animais: estes sentem dores, mas não podem pensar sobre elas. Esse privilégio é nosso: os idiotas que pensam estar sobre todas as coisas.

Mente sã num corpo não tão são

     Pois então, parto aqui do ponto de vista cartesiano: nós, seres humanos, somos duais; o espírito é a primeira propriedade e o corpo, a segunda. Acima do corpo há a razão; que mesmo disputando com tantos instintos ainda é capaz de dar a palavra final. Porém, essa palavra final não é dada sem dificuldades. Até que o pensamento "suba" a essa faculdade supra-sensorial, ele percorre um caminho tortuoso: as mazelas físicas. Dores, deficiências e doenças são obstáculos para um veredicto racional: dificilmente alguém sofrendo fortes dores emitirá um discurso racional, e isso é natural. Natural porque também somos compostos da segunda propriedade, o corpo. Carregamos esse peso limitador, que inclusive media uma percepção talvez não tão necessária "estímulo recebido - reação do corpo - síntese racionalizada". O corpo é "bom" porque não o escolhemos, e nem conhecemos algo melhor. Um corpo são não é garantia de uma mente sã; imagine então um corpo enfermo.

Da bomba-relógio

     Como em uma relação dialética, nascemos com a semente da nossa própria destruição. O corpo é uma instituição fadada ao fracasso: talvez a minha única certeza aqui. Um recém-nascido desde já precisa vestir-se de precauções para sobreviver neste mundo - apenas para continuar lutando na tentativa de manter esta existência. Com o crescimento desse ser humano, crescem também os gérmens das enfermidades, as doenças capazes de acabar com a vida (diabetes, hipertensão e tantas outras que nem imagino). Alguém aí pode dizer que há maneiras tanto preventivas quanto de tratamento para estas mazelas. Mas se temos de nos prevenir não é isto já uma prova da mediocridade do corpo?

Angústia

     Somos impotentes quanto a esses fatores. Buscamos sempre uma qualidade de vida (utópica), mas essa melhora é sempre temporária. O que nos resta é a angústia de sabermos as nossas limitações (diferente do seu cão, por exemplo) e talvez, para alguns, buscar uma tentativa de superação.

*** Anima vincit corporem ***

20/04/2013. Nicolas Peixoto.


sábado, 13 de abril de 2013

O vício mórbido

O vício mórbido

     Tenho um vício mórbido, mórbido porque é de morte mesmo. Vícios fazem mal, este o faz em dobro: sou viciado em pensar na minha morte. Em vez de viver e sorrir, aproveitar o meu tempo fazendo algo bom, eu o perco com sonhos improdutivos com a morte. Se não tenho muito o que fazer, meus olhos focam o nada, e lá estou eu dançando com Ela. Cada vez é uma música diferente, salvo as minhas favoritas: gosto de repeti-las. Quando estou no ônibus, penso "será que vai bater?" e assim sofro o acidente; morri. Atravessando uma rua: "e se algum carro vier na contramão?"; morri. Em um assalto: "será que o cara vai atirar em mim?"; assim morro também. Quando viajei de avião, uma vez no céu,  temi a iminente queda; iminente na minha imaginação, pois não caímos. Não queria dizer isso, mas acho que senti uma ponta de desapontamento.
     Bem, mas que fique claro que não imagino isso pela tragédia somente, não não. Na verdade, tenho um sonho maior: morrer em prol do próximo. Juro que é verdade. Penso que poderia salvar uma criança de um atropelamento, ou uma mulher dum assalto, ou protegendo alguém com meus braços. Tantas maneiras, um só fechamento: eu morto, a pessoa grata com a ação daquele desconhecido; virei herói. Alguém aí poderia dizer que é egoísmo meu, mas terei de discordar. Já que todo mundo um dia morre, por que não posso ao menos escolher de que forma morrerei?
     Confesso que tenho um grande medo: o de ter uma morte inútil; uma morte sem sal. Por exemplo, ser atropelado por não esperar o sinal fechar, ou reagir a um assalto cujo alvo sou eu apenas. Mas o que mais temo é o desejo de muitos: morrer dormindo. Mas que tragédia! Morrer sem prelúdio, sem emoção, simplesmente parar de funcionar. Não quero isso para mim!
     Agora, não sou tão fã de mortes lentas, com muitas dores, mas há modalidades no mínimo interessantes. Quer exemplos? Bem, ficar internado, no "morre-não-morre" (mas que resultará de fato n'Ela!). As pessoas te visitando, o som dos aparelhos, a comoção, a expectativa... Por falar em expectativa, eu tenho gastrite, disseram-me que se eu não me cuidar...
     Minha psicóloga me chama de pessimista. De novo, discordo! A morte é a coroação da vida, então valorizando a minha morte, faço valer toda a minha existência! É isso! A maluca não enxerga. Já está meio velha, aposto que morrerá dormindo, coitada. Nem ela, nem minha família, nem meus amigos gostam de conversar comigo sobre morte; "você ainda é jovem, cara!" eles dizem, ao que respondo "e uma bala perdida? E um incêndio, ou afogamento?". Depois, ninguém mais fala nada. Sou obrigado a escrever apenas. Escrevo no papel, que é uma árvore morta!
     Falei sobre afogamento, lembrei-me do mar. Quando vou à praia, costumo ficar na beirada, pois não sei nadar. Fico lá durante alguns minutos iniciais, e logo estou eu flertando com a morte. A praia tem salva-vidas; eu não ficaria esquecido.
     Eu não penso só na minha morte: também penso em mim morto. O sepultamento seria um barato: a chuva, o céu nublado, os familiares (nem todos gostam assim de mim, mas iriam pela formalidade), os amigos próximos... Pedi ao meu irmão que colocasse determinada música, para dar aquele tom épico ao meu funeral. E é claro, gostaria de assistir a este, ver quem chora chorando e quem chora fingindo. Ver o remorso de uns, a compaixão de outros e o agradecimento estampado nos rostos dos mais íntimos... Hmmm... Melhor nem pensar!
     O mais interessante é que há quem nem imagine que me sinto assim, atraído por Ela. Por trás do "bom dia" e do sorriso, há um "pode ser meu último...!". Não sou epicurista, mas tento aproveitar o meu presente do meu jeito: tiro o carpe diem, coloco o laudate mortem - esse é o mote da minha filosofia; pois só podemos louvar a morte em vida.
     Enquanto desenvolvia a minha filosofia - laudate mortem! - fui acometido por algo mais mortal que a própria morte: o amor. Amei uma menina, desejei-a mais que a morte; até que ela se mostrou uma traidora, apunhalando o meu coração, mas conservando-me vivo, para sofrer mais. E eis que ainda sofro, e esse sofrimento rouba-me tempo de vida. Mais uma vez a minha amiga me resgata: "quero ver a cara dela quando eu morrer, em breve!".
     Gosto de sentir minha respiração; vai e volta. Olho os pássaros, eles não sabem do destino deles, acho isso muito triste. Por isso, meus amigos, não se enganem, eu amo a vida. Amo a minha vida, pois só morre quem ainda vive. Ponto.
     Laudate mortem!

13/04/2013. Nicolas Peixoto.


domingo, 24 de fevereiro de 2013

Porção de versos

Porção de versos


Flor morta

Todos os dias
José aguava
uma flor morta.
Enquanto o fazia,
consolava-a:
"és a mais bela que
meus olhos já miraram".
E dia após dia
inundava-a
com seu amor improdutivo.
Demorou a perceber
que a flor recusava
seus carinhos.



Transcendente

Quem foi que disse
que eu nada levo dessa vida?
Quem proferiu tal coisa
tão irrefletida?
E as amizades, os sentimentos
os sinais impressos na minha alma,
tão belo acalento?
Levo também a minha razão
meu processo de evolução
meu amor por quem é parte de mim.
Quem disse que não leva nada
o fez por não saber
Descobrirá que o que carrega
não é nada além de seu ser.



Ditadura

A ditadura está à venda
na farmácia da esquina
no saco de cocaína
(que o jovem leva na mão)
nos programas de televisão.

A ditadura é vendida
na conversa do café
na revista que é lida;
pelo professor que repete
pelo pai que obriga.

Compramos todos a ditadura
engolindo tolas ideias
exigindo certas posturas
olhando feio o diferente:
intolerância, controle, razão.



Desrealização

Seus cabelos são só cabelos.
Sua pele ainda é pele.
Seus olhos são belos mas enxergam mal.
Seu toque não me desperta mais.
O som não sai mais da sua boca.
Ontem olhei para você
e vi apenas uma mulher.



Chuva

Sua lágrima caiu no meu rosto
e fez brotar em mim uma lágrima.
Tomou-me de susto,
caí aos prantos no seu pranto.
O seu choro faz nascer a vida
e a minha vida então renasce...



Arremedo de céu

Belo céu vermelho duma noite mal-amada!
As árvores dançam ao ritmo dos ventos
atentas ao mínimo movimento
das estrelas e da lua desgarrada!

Sublime painel rubro da meia-noite desalmada!
Onde o silêncio é soberano e impera,
testemunha una do choro que se entrega
às luzes infinitas da Via-Láctea!

Manto escarlatíssimo que cede voz à alvorada!
Ergue-se e põe-se taciturno,
Véu da visão tão contemplada!

Mesmo que meus olhos fechem-se
Sei que meu espírito permanecerá aqui
sempre a admirar-te, ó eterno rubi!



Poeira cósmica

Porque tentei agarrar a estrela,
em minhas mãos sobrou apenas 
poeira cósmica.

Postados em 24/02/2013. Nicolas Peixoto.







quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Lamentações d'uma alma decadente

Lamentações d'uma alma decadente

     Sempre que vivemos um amor, este é o grande amor da nossa vida até ali. Na verdade, nem sempre. Mas para mim, nesse momento, vivo o grande amor da minha vida. É necessário que se faça algumas correções: na verdade não vivo o amor, sofro o amor. Sofro porque há correspondência, mas a carta não chegou na hora, atrasou-se em alguns anos. Encantei-me, entreguei-me, desapontei-me. O sentimento estava morto, e assim deveria ficar. Sinto-me como um cavaleiro errante, que desbravando campos, florestas e montanhas, encontra a sua princesa e casa-se com ela, e torna-se seu salvador. Mas a conclusão da história não é assim para mim.
     Percorri (e percorro) calabouços e vales para encontrar a minha princesa anônima, e quando lá cheguei, outro já havia despojado-a: Ela já estava noiva. Apesar disso, quebramos algumas barreiras (não as regras) e nos aproximamos até que nossa amizade chegasse ao ápice: o bardo não-iniciado cantou sua poesia de amor. A donzela apreciou (qual mocinha não gosta de virar a musa d'algum miserável?), mas permanecemos assim. Eu visito seu coração, mas não o habito. Então, por honra, prudência e amor próprio, recolhi meu acampamento, sangrando onde ninguém houvera ferido antes. Com a integridade atingida, visitei o submundo.
     Lugar deplorável, mas há poesia. A maior parte da minha poesia vem de lá. Ninguém gosta do lugar, mas nos acostumamos de tal forma que viramos nativos. Uns até acabam defendendo aquilo. Foi assim que virei um frequentador do submundo, e mais tarde, do inferno (porque não se trata do mesmo lugar). Há muitas diferenças (e semelhanças) entre eles, mas reservarei-me em dizer apenas que o submundo é mais triste e melancólico, e há serenidade nessa melancolia. O inferno é a loucura. Lá sentimos angústia constante, nada é equânime, nada parece passageiro. Vira e mexe nos sentimos perdidos e pressionados, e não nos damos conta de que talvez estejamos perambulando pelos vales do inferno.Por favor, não confunda com o inferno cristão: nesse aqui, não se cai por fazer necessariamente o mal.
     Faz-se muitas amizades nesses dois ambientes, mas nunca encontrei um amigo lá. Mas tenho cadeira certa no submundo, num canto escuro duma sombra tranquila. Dali dá para ouvir um som belo do órgão, e os candelabros me permitem escrever poemas. A verdade é que parece que meus dias como cavaleiro estão terminados, já que pendurei a espada e dei meu escudo para um desabrigado proteger-se da chuva. Meu cavalo fugiu. O que me sobrou foram meus pensamentos que viram palavras escritas. Às vezes há quem aplauda minha depressão, e ganho a vida vivendo assim.
     Sou amigo do absurdo, porque não há nada que ele rejeite: se parece irregular, irracional, caótico, é coisa do absurdo. Embriaguei-me de palavras e pensamentos, e esqueci que deveria estar maldizendo meu destino e chorar por uma mulher que não é mais virgem. É mulher de outro, não é mais donzela, apesar de portar-se ainda como tal. É hipócrita, perfeita para um frequentador do submundo (a luz daqui é a luz da lua, não há Estrela alguma nesse céu). Sua falsidade talvez engane até São Pedro, e talvez este a deixaria entrar no talvez-céu. Senti o cheiro da sua luxúria quando vi a sua divindade cair por terra, junto com o sangue de sua iniciação. Não passa de uma plebeia qualquer vestida com uma capa de nobre, aquele espírito ganancioso. Pior que ser assim é amar alguém assim. É como cultuar os deuses das trevas. Por isso estou aqui nesse buraco escrevendo. Maldito seja todo e qualquer amante desta mulher impura! Maldito seja eu! Já sou, obrigado.
     Há alguns anos espalharam por aí que todas as princesas já haviam sido salvas, que só restaram as meretrizes; e que cavaleiros nobres disputam-nas na espada! Olha a que ponto o mundo chegou. Por falar em mundo, não sei bem como ele anda, já que há alguns meses não saio daqui. Mas eu ainda mando cartas para Ela. É uma das poucas comunicações que mantenho com esse mundo imundo. Imundo também é quem o adora. Ela o adora. Adora a todos, até a mim. Adorar não me parece o suficiente então, já que aqui banalizamos tal palavra. Diz que já esteve por aqui, mas não acredito, Ela não teria tal aptidão. Está muito ocupada cuidando de rebanhos, das coisas da casa e do marido. Ah, o marido! Desgraçado que roubou e rouba a sua juventude! Pois que roube então!
     Ainda sou jovem, apesar da compreensão de mundo de um velho sábio. Questões como linearidade e simetria eu deixo para os engenheiros. Quem quiser ler-me que me entenda! Ainda faço o esforço de usar o idioma vigente aqui. É de se admirar que em apenas vinte e um anos eu já tenha me tornado fluente, podendo até escrever poemas. Mas não nos esqueçamos que isso aqui se trata d'Ela, aquela miserável. O pior é que comprei uma casa quando sonhava em casar-me com Ela. Que bom, doei aos pobres! Foi na mesma época que fui para o inferno. Ah, o inferno! Recebi tanta carga de angústia que pensei em matá-la. Para não cometer tal assassinato, tive de matar a mim mesmo. E estou bem nesse pós-vida. Ela terá filhos, e todos terão sua cara. Tomara que não puxem seu caráter. Mas seria bom se tivessem seus olhos. Ah, seus olhos, não consigo esquecê-los. Nem de seus cabelos.
     Certa vez, escrevia à mesa, e Ela estava sentada próxima. Fingi que não havia entendido uma palavra, e chamei-a para lê-la para mim. Deitou-se sobre a mesa. Seus cabelos, em meu rosto. Naquele fragmento temporal pude sentir o perfume mais agradável que já senti nessa vida. Inspirava em seus cabelos, inspirava-a e transpirava. Como desejei que aquele momento durasse! E ela sorriu-me... Sorriu-me! Perdoe-me, leitor (se é que há algum), se o papel em que escrevo estiver úmido e borrado, é que não consigo contê-las, não posso. Não, estou sentindo aquilo novamente!
     Um pobre-coitado próximo me consola. Traz-me um copo d'água, diz-me umas palavras; passou por queda semelhante. Meus olhos lacrimabundos olham para o céu para saberem se já amanheceu. Mas não amanheceu. Não amanhece aqui, lembro-me pesarosamente. Recupero a respiração e cubro-me com um pedaço de sombra. Cada palavra que escrevo machuca: machuca a mão, a alma, o coração. Ela também escreve poesias. Finge que sofre, a poetisa. Sempre mostrava-me seus poemas. Eu os lia de coração aberto, sofrendo suas dores e sonhando seus desejos. Quero os elogios de volta. Na última carta que me enviou, mandou-me para o inferno. Ela não tem noção da literalidade disso; Ela não sabe por onde ando. Acabo de ser visitado pelo vigia do submundo: veio dizer-me que meus níveis de angústia e fúria estão acima do aceitável. Mandou-me para o inferno. Estás feliz agora, mulher?!
     Estou no inferno. Posso sair daqui quando me acalmar, mas essa não é a vontade do dragão. Longe disso. Aqui tenho todo o combustível para aqui permanecer. Deixaram comigo algumas fotos dela, para que a minha angústia permaneça. Quando olho para estas figuras, sinto-me como se estivesse lá com Ela, vivendo aquele momento. Desgraçada! Deram-me uma foto com o estúpido do marido! Eu a queimo nas chamas naturais, aumentando o meu ódio e a minha estadia por aqui! A boca sangra, caio no chão, riem de mim. Estão em situação semelhante à minha, mas estes já estão com a alma totalmente corrompida. Sinto vontade de chorar, mas isto é proibido por aqui. Como desejo voltar para o submundo! Não posso escrever aqui (também é proibido), posso apenas olhar, sou um passivo. Não! Não sou daqui! Acalme-se! Acalme-me!
     Deito-me em meio às chamas. Tento lembrar-me... Lembrar-me de quando a conheci... Tempos doces aqueles! Vivíamos brigando no início, e não sabíamos ainda que tratava-se de amor! Nossos amigos perceberam que havia amor nisso tudo, e justo nós, os últimos a nos dar conta! E depois, uma amizade como nunca vi antes brotou, e nossos olhares já significavam algo mais... Sim! Foi assim mesmo! Lembro-me muito bem! Começamos devagar, sou cortês... Que abraço maravilhoso! Carregado de libido, sim, era o que tínhamos à época! Oh, por que me deixaste, minha Estrela? Por que te tornaste fria, mudaste-te de constelação? Não sabes que cá eu pereço, sem uma vida? Minha vida és tu e somente tu, Vésper! Sim, não te odeio, pois odiar-te é odiar a mim mesmo! Ainda pulsa um coração aqui, pulsa por ti! Sim, não és mais virgem, é verdade. Abandonaste-me, é verdade. Mas ainda te amo, e essa é a frase mais difícil de dizer! Não te quero mal, sou o teu bem! Oh! O dragão incomodou-se com tanta vida, com tanta paixão! Voltarei para o submundo!
     Ah! Aqui posso ficar na minha melancolia sereníssima! Aqui ninguém me vê! Aqui é meu lar! Cumprimento uns iguais, e retorno para a minha penumbra. Estou feliz: agora sim posso chorar. Dragão estúpido! Não percebeu que trouxe comigo as fotos d'Ela! Agora sim, contemplo-as, contemplo-a, choro no meu conforto. Desculpe se muito choro, é que ainda não pude me conformar, sou tão jovem, tanto amor para amar... E daqui desse umbral mal posso ver-te, minha celeste. Este é o meu castigo, esta é a minha benção! Farias uma prece para mim, uma única vez na vida? Confortaria este coração que já não habita este corpo?
     Ah! Como dói lembrar-me de que há muito estou morto...!

07/02/2013. Nicolas Peixoto.